Como inaugurar uma coluna que se propõe carregar, sem dó, nem piedade, contra a aparelhagem dessa deformidade, dessa imensidão, desse incontestável “futebol moderno”? Assim, simples: basta esquecer o futebol por instantes e esperar que a modernidade se manifeste. E eis que, em todo seu grosseiro esplendor, ela se encarrega de nos fornecer material de primeira categoria.

Chega assim ao meu cuidado, e em primeira instância, o “Áudio do Lage” - como se tornou conhecido o fenómeno. Enviou-me um amigo e depois outro: em ambos a mesma simplicidade de meios, o mesmo absentismo comunicativo; nem um adjectivo, nem um “francamente” que fosse. Apenas aquele singelo e vil quadradinho com a inscrição “Áudio de Bruno Lage após o jogo com várias críticas ! 👀 #benfica #slb #slbenfica.”

E o problema é este, caro leitor. Todos se insurgem contra o pobre Lage. Todos se levantam a favor do pobre Lage. Mas ninguém pronuncia uma sílaba que seja a favor da mais elementar decência; a favor daquela, em tempos, consensual norma de convivência que nos diz que, em princípio, talvez não seja o mais correto gravar uma conversa sem autorização dos participantes. Em podendo, é evitar; alguém sábio diria.

Está visto que não é assim. A norma social parece ser um vestígio de Conímbriga, com direito a seu próprio “Centro de Interpretação”; ou então sou eu a alucinar. É que nem o próprio Lage, debaixo daquelas sobrancelhas de Philip Pirrip, na lamentável conferência de imprensa de que foi protagonista (já lá vamos), se mostrou capaz de enxergar: “Foi uma conversa que eu pensava privada, veio a público e, estamos aqui hoje para esclarecer tudo sobre essa conversa”, disse. E pronto, siga, venha a próxima, está a andar, tudo normalíssimo.

Voltemos atrás. O pobre Lage achou por bem esclarecer um conjunto de adeptos, depois de o Benfica levar três (3!) do Casa Pia. Lage foi temerário? Temerário não é o termo. Lage foi néscio. Foi para além do razoável no papel de treinador-adepto que decidiu para si? “Para além do razoável” não é a expressão. Lage ousou Andrómeda. Mas nem a mais napoleónica nabice, nada justifica que se considere normal gravar conversas. E mandá-las para a vasta, mundialíssima rede onde todos parasitamos.

E depois sentaram o pobre diabo na liça, diante da imprensa. Era só baba e sobrancelhas. Escreveram-lhe a rábula e lá ficaram os três a assistir ao suicídio. Iago, Lady Macbeth e Ricardo III, na primeira fila, expressão grave e senatorial; enquanto o pobre-diabo esgravatava pelos seus dois tostões de dignidade. Discurso ensaiado e sobrancelhas a arder, o pobre Lage dizia coisas como “Alinhado com estas três pessoas que estão aqui à minha frente.” Vinte minutos da mais exemplar vergonha alheia de que sou capaz de recordar. Piores mesmo que aquela segunda parte em Rio Maior. Por mais que nos quisesse convencer fosse do que fosse, aquelas sobrancelhas de revolução industrial, de órfão inglês à procura de uma concha, aquelas sobrancelhas diziam tudo.

Confesso: preferia ter começado isto de outra maneira. Exaltando o futebol que ainda é possível encontrar em “futebol moderno”, por exemplo. Mas as fintas do progresso são de um desembaraço só. Ficamos tão à toa que nem as vemos passar.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.