A seleção portuguesa de andebol sub-21 alcançou, no domingo, o estatuto de vice-campeã mundial e, meses antes, a seleção principal já tinha conquistado o 4.º lugar no Campeonato do Mundo, a melhor classificação de sempre. Dois resultados que não surgem do acaso, mas de décadas de trabalho silencioso e progressivo que colocou Portugal no mapa do andebol mundial.
“Hoje ninguém entra em campo contra Portugal sem estar no máximo das suas capacidades,” afirma Carlos Resende, antigo internacional e treinador. A consistência já não é apenas uma ambição, é um hábito.

O salto qualitativo do andebol português explica-se, em parte, pelo empenho dos três grandes clubes nacionais. “Muito se deve ao forte investimento que FC Porto, Benfica e Sporting têm feito em criar condições fantásticas para os atletas treinarem,” sublinha Resende. Onde antes havia equipas técnicas limitadas, hoje existem nutricionistas, psicólogos, treinadores especializados e médicos ao serviço da excelência. “Só para dar um exemplo, a primeira vez que fui treinador do FC Porto, a nossa equipa técnica era constituída por mim e por um treinador-adjunto, um fisioterapeuta e quando precisávamos de alguma coisa íamos ao Dr. Leandro, recorda, aludindo ao período entre 2006 e 2009. Não foi assim há tanto tempo.

O ano passado, quando voltou a treinar o FC Porto, o retrato era outro. A equipa técnica era constituída por mim, pelo treinador-adjunto, um treinador de guarda-redes, por um preparador físico, um nutricionista, uma psicóloga, um médico e dois fisioterapeutas”, enquadra o melhor jogador de uma geração que marcou uma era na história da modalidade em Portugal: em 2000, ficou em 7.º lugar do Europeu e Carlos Resende foi considerado o melhor lateral esquerdo da prova; antes, em 1994, o ABC jogou a final da Liga dos Campeões de andebol, perdendo para o CB Cantabria. Na temporada seguinte, Resende chegaria ao clube de Braga.

O outrora jogador, uma das referências do andebol português, está capacitado para explicar como, entretanto, a modalidade tem pulado vários degraus. E volta aos clubes: Não só dominam internamente, como também têm deixado marca lá fora. O Benfica conquistou a Liga Europeia em 2022, o Sporting atingiu este ano os quartos de final da Liga dos Campeões, ficando em 2.º lugar num grupo repleto de favoritos, e o FC Porto tem sido presença regular na Liga dos Campeões, com exibições consistentes e prestigiantes. Estes feitos juntam-se a múltiplos títulos nacionais que têm elevado o patamar competitivo do andebol português.

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Por outro lado, salienta Resende, “mesmo os jovens já têm salários que os obrigam a serem profissionais. Isto muda tudo.” E a diferença sente-se desde a base. “O Diogo Rêma não foi eleito o melhor guarda-redes deste Mundial de sub-21 por acaso,” comenta. Já com bagagem na Liga dos Campeões e na Liga Europa, o jovem do FC Porto compete com Gustavo Capdeville, guardião de 27 anos, do Benfica, na seleção A. E não é caso isolado: Ricardo Brandão, Gabriel Cavalcanti (estes em Portugal) ou Vasco Costa (na Suécia), embora lesionado, já contam com minutos em campeonatos de topo. “A partir de agora, resta-lhes a seleção principal. E a verdade é que alguns já lá estão”, realça.

Se os resultados recentes surpreenderam, o caminho foi sendo pavimentado há décadas. Carlos Resende recua até à geração de Ricardo Andorinho e Eduardo Filipe, campeões europeus de cadetes. Mais tarde, Portugal foi vice-campeão europeu de sub-20 (2020 e 2022) e agarrou o mesmo estatuto nos sub-18 com nomes como Rui Silva, Pedro Seabra ou Gilberto Duarte.
“Portugal já tinha presença nas fases finais das grandes competições jovens. O fenómeno recente é a frequência com que lá estamos e a qualidade crescente das gerações.”

Mérito com sotaque português

Além do investimento dos três grandes, Resende diz que não se pode dissociar o valor dos treinadores, “incluindo estrangeiros como Mats Olsson, que foi um dos melhores guarda-redes do mundo, ou Garcia Cuesta”. E acrescenta o papel do atual selecionador nacional: “Com o Paulo Jorge conseguimos dar um salto e temos bombardeado todos os recordes. Não podemos tirar mérito a esta equipa técnica e a estes elementos de direção da federação, porque já os clubes investiam e não se conseguiam esses resultados de destaque.” Assim como não é alheio os resultados de excelência que o treinador responsável pela seleção principal há uma década tem tido nas suas equipas.

Em 2020, o andebol nacional alcançou um marco simbólico com a estreia histórica nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Desde esse ano que Portugal só falhou a fase final de uma grande competição, em Paris, na última edição dos Jogos. E com esta geração que foi vice-campeã mundial esteve nas duas últimas finais do Campeonato da Europa sub-20.

Portugal desenvolveu uma matriz tática própria, adaptada à nova realidade do andebol. Os jogadores apresentam agora uma morfologia competitiva - “não ficamos a dever nada aos nórdicos”, garante Resende - e uma compreensão do jogo que os coloca em igualdade com os melhores. “O Rêma já deve ter quase 100 internacionalizações nas seleções jovens. Eu, que fui um dos mais internacionais da minha geração, tenho 20 ou 22.” A profissionalização precoce, aliada ao volume competitivo, dá aos jovens portugueses uma maturidade rara.

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Neste Mundial de sub-21, Resende destaca o central Filipe Monteiro como revelação: “Foi dos mais importantes da seleção. Vai agora para o Sporting.” A atual fornada será a base da seleção principal e é preciso garantir que o pipeline de talento não seca. “A verdade é que os atletas não crescem todos de forma linear. É preciso arte e engenho para manter gerações fortes.”
Do que tem observado, o atual treinador do Póvoa, da primeira divisão, acredita que “vamos continuar a ter alguns atletas extremamente interessantes, também alguns atletas filhos de atletas que tiveram bons resultados”. O facto da própria seleção A ser bastante jovem - “pelo menos os jogadores em posições de destaque são muito jovens” -, dá garantias que continuem a crescer e que os resultados da excelência se possam manter. “A minha expectativa é muito positiva.”, confessa Resende.

Apesar da evolução notória, há desafios por resolver. Os horários escolares, por exemplo, limitam o treino: “Há jovens a treinar até à meia-noite. Em Barcelona, ninguém treina depois das nove e meia da noite.” Também a carreira de treinador precisa de estrutura. “Na formação, deveria haver uma via profissional. Muitos treinadores precisam de outros trabalhos para subsistir”, sublinha.

Perder para a Dinamarca, como aconteceu na final do Mundial de sub-21 e com a seleção principal, em janeiro deste ano, nas 'meias' do Campeonato do Mundo sénior, já não é sinónimo de inferioridade. “Não perdemos porque somos mais fracos. Perdemos por pormenores: um contra-ataque falhado, uma defesa que faltou.” Portugal não é mais o outsider simpático. A seleção impõe respeito e “clubes como o Sporting já “vulgarizam” gigantes europeus na Liga dos Campeões”, conclui Carlos Resende.

O Europeu de 2026 será a próxima grande montra e, pela primeira vez, Portugal entra provavelmente como candidato natural. Não por arrogância, mas por mérito acumulado.