Segundo o “Manual de Normas e Procedimentos da Idade Média” — compêndio que consulto com a ansiedade doentia de quem procura respostas definitivas — era nos Rossios que tudo acontecia. No mesmo livrinho imaginário dou-me ainda conta do seguinte: as aventuras desenrolavam-se em castelos, florestas, charnecas fatais. Hoje, nada disto sobrevive — digo-o com absoluta certeza porque é justamente para fazer esta afirmação que recorro ao velho e imaginário almanaque. Hoje, a vida palpita no OLX e as grandes paixões venais pulsam nos seus arrabaldes suburbanos. Sítios como o Complexo Desportivo da Boavista, depois das Portas de Benfica, ali para os lados da Buraca.

Ora, Março é um mês ardiloso, e não apenas pelas exigências Quaresmais ou porque a Selecção insiste em jogar. É que, cá em casa, Março é um mês absolutamente trágico, um furacão interminável de festas de anos, lanches improvisados e jantares desesperados. Não há sossego, não há tréguas, sobretudo não há ideias para presentes. Tudo é feito à última hora, sob pressão infernal, como se cada presente fosse a última hipótese de redenção. Ia a semana passada a mais de meio, e ainda não havia o que oferecer ao Sebastião, nosso adorável e adaptabilíssimo filho segundo. Foi então que percebemos algo de inaudito, de insólito: os mais velhos tinham transformado uma mesa, excedente das festas e abandonada à própria sorte, num estádio portátil, num chão sagrado onde o futebol se revelaria.

Transformada em quê, perguntará o leitor ingénuo? Em futebol, respondo. Futebol. Assim mesmo: 22 homens a disputar uma bola redonda. Porque, já o tenho dito e juro pela minha honra, o futebol pode acontecer em qualquer lugar, até mesmo em cima de uma mesa. Já vi futebol acontecer em Assembleias Gerais de clubes, pracetas cercadas de prédios horrorosos, no trânsito caótico da Segunda Circular ou num desses cafés impregnados pelo ruído infernal da CMTV. Onde quer que haja dois grupos de homens a lutar pela posse de uma bola— e por vezes nem tanto — aí estará ele. Neste caso particular, aconteceu em cima daquela mesa esquecida, sob a forma nostálgica e magnética de uma palavra misteriosa: Subbuteo. Tão boa de dizer como fácil de amar.

Quando, na Quinta-feira de manhã, cheguei às piscinas do Bairro da Boavista, já sabia que ia ter com o Sr. Luís Filipe Silva, presidente da Associação Portuguesa de Subbuteo e o responsável pela conta do OLX que salvou os presentes de última hora das festas de Março.

Surgiu como uma aparição providencial: responsável pela secção de Subbuteo do Belenenses, praticante entusiasta de carica e apóstolo incansável do futebol de mesa nas suas vastíssimas extensões. Um homem tão da modalidade que responde como se fosse o próprio desporto. Quando lhe disse: — “Sr. Presidente, tenho de escrever uma crónica sobre si!”, disparou como quem remata de primeira: — “Prefiro que escreva sobre o colectivo.” Para ele, qualquer breve diálogo parece ter o potencial de uma flash-interview. Filho único, Luís Filipe treinava sozinho no quarto, duas horas por dia, em reclusão religiosa. Outros tempos.

Justin Setterfield

Hoje isso não seria possível. Nem desejável, segundo os mais esclarecidos. Foi de um compenetrado e moderno sacerdote católico que ouvi que já não se devem dar bonecos às crianças. O tempo é outro, dizia. O que é preciso é dar-lhes computadores. Porque é o mundo em que vão viver. Nunca achei que fosse viver para assistir a Padres a citar Steve Jobs como se fosse um Doutor da Igreja.

Mas vivi pouco.

Pois bem. A minha catequese é outra: dêem-lhes bonecos. Figuras em forma de cavaleiros, cowboys, astronautas, futebolistas. Dêem-lhes o mundo. O futebol na ponta dos dedos. Não se trata de réplicas da realidade — trata-se da própria realidade em ponto pequeno. Quem achar que uma criança brinca como se estivesse a imitar, não percebe nada do assunto. Não é uma simulação, é um mundo mesmo. Um mundo inteiro, jogado numa mesa concreta. Onde moram castelos, florestas, relvados transcendentais.

Certa vez, Chesterton contou que o seu pai lhe construiu um teatro de brincar. Um minúsculo auditório com palco e cenários pintados à mão. Foi assim que aprendeu que brincar é participar no mistério da Criação. E que os objectos da infância não são ilusões — são a realidade em miniatura. E que é com eles que a alma da criança encena a própria vida. E o mundo começa a fazer sentido.

Pode haver Padres que não sabem disto. Mas pessoas como Luís Filipe Silva sabem. Ou como aquele seu companheiro que anda a montar, com eloquência devota, uma réplica de mesa do Estádio Alfredo Marques Augusto, casa do Olivais e Moscavide. (Que maravilha.)

Há brinquedos que salvam. O Subbuteo é um deles — um antídoto para o verde veneno dos monitores que devoram a infância. Para a solidão sem fim dos labirintos fosforescentes; desses napalms silenciosos que neutralizam a imaginação. Estão aí — e é inquietante — miúdos que não sabem como se brinca, como se cai, como se perde. Nem como nos vemos uns aos outros. O Subbuteo resgata e vence a passividade hipnótica porque é o oposto absoluto da dopamina artificial. É companheirismo, e é estratégia e destreza. Repõe o olhar e a presença, a alegria de uma disputa frente a frente. Devolve-nos a vida como a vida deve ser vivida.

Na mesa, a bola rola com uma honestidade primordial. Longe do anticlímax burocrático do VAR, das polémicas de circunstância e dos contratos obscenos. É o futebol em bruto, simples, verdadeiro — um jogo de dedos precisos, pequenos jogadores imóveis, e uma bola que rola com a dignidade eterna dos grandes clássicos da humanidade. Como, de resto, o pequeno almanaque medieval antevê: as grandes aventuras não desaparecem —podem é mudar de escala.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Nota: “O futebol na ponta dos dedos” é o lema da Associação Portuguesa de Subbuteo, cujo e-mail, para irem imediatamente a correr inscrever os vossos filhos, é este: secretaria@apsubbuteo.pt