
Diz-se que Luis Enrique foi a primeira pessoa a dormir no novo e moderníssimo Campus PSG, inaugurado em 2024. Faz sentido. É possível que a inauguração da obra tenha enterrado, com uma década de atraso, todas as piadas alguma vez contadas sobre o Paris Saint-Germain e a sua obsessão pela Champions. Quando em 2011 o Qatar Sports Investments (na prática, o Catar) comprou o clube, que poucos anos antes até havia namorado a despromoção, atirou-se dinheiro para comprar os melhores jogadores, para trazer os treinadores mais mediáticos. Sabendo que o domínio interno seria fácil de conseguir, o objetivo foi sempre e apenas um: ganhar a Liga dos Campeões.
Acontece que, enquanto projeto, somar estrelas atrás de estrelas tende a ser poucochinho. Com Messi, Neymar e Mbappé no plantel, o Paris Saint-Germain nunca passou dos oitavos de final da Champions. Atacar com 11 e defender com oito não costuma dar grande resultado na mais competitiva prova de clubes do mundo e a chegada de Luis Enrique foi o primeiro passo para a admissão do erro. Nunca é tarde demais para mudar o paradigma.
E por isso hoje o PSG tem uma academia de nível mundial que custou pouco mais do que Neymar. Serve-se do maior viveiro metropolitano de talento, varre os clubes rivais para contratar os melhores jovens franceses. Há estrelas no clube, há muito dinheiro gasto, claro está, porque assim é o futebol de hoje em dia. Mas, essencialmente, há um grupo de rapaziada que quer ganhar não por si, mas pelo Paris Saint-Germain.
No próximo dia 31, o Paris Saint-Germain voltará a jogar uma final da Liga dos Campeões, na primeira época sem Neymar, Messi ou Mbappé no plantel, depois do desaire em 2020, em Lisboa, frente ao Bayern Munique. Fá-lo como uma equipa verdadeiramente preparada para os desafios. Na noite desta quarta-feira, no Parque dos Príncipes, deu-se a situação invulgar do campeão francês não ser a equipa com mais posse de bola, perante um Arsenal obrigado a pegar no jogo para ultrapassar a desvantagem da derrota por 1-0 em Londres. O PSG respondeu dando ao Arsenal um pouco do seu próprio veneno, com um golo na sequência de uma bola parada, e outro num ataque rápido.
Na hora de trancar o forte, foram 11 e não oito. Donnarumma, o último dos pilares, salvou a equipa com um ror de defesas decisivas, duas delas nos primeiros dois minutos. E Kvaratskhelia foi tantas vezes o anjo da guarda de Nuno Mendes, amarelado cedo e que teve no georgiano um constante apoio no momento defensivo. Talvez Khvicha seja uma das caras desta nova forma de ver o futebol em Doha, que chegou tarde, mas ainda a tempo. A jovem estrela abnegada, que ainda tem tanto para ganhar. Faz um jogo impressionante em Paris, liderando a reação após uma entrada algo errática do PSG, com dificuldades a acertar a pressão.
Foi depois de um remate de Kvaratskhelia ao poste (17’) que o PSG equilibrou e o Arsenal começou a acumular erros de construção que a equipa da casa aproveitava para saídas rápidas. Ainda antes da meia-hora, um livre de Vitinha foi defletido para a entrada da área, onde Fabian Ruiz ganhou com o peito, enchendo o pé para marcar o primeiro, num remate que ainda foi ligeiramente desviado por Saliba. Não marcar nos primeiros minutos, nas muitas oportunidades que teve, foi fatal para o Arsenal.
Depois de espantada a reação inglesa, a partir daí o jogo tornou-se bem mais simples de controlar para o PSG. Não foi um jogo bonito, não foi sequer emocionante, mas para batimentos cardíacos acelerados já bastou a eliminatória da véspera, impossível de igualar. Mas foi um jogo adulto de uma equipa sem fretes ou frescuras.
No meio-campo, Vitinha esteve mais apagado do que o costume (falhou um penálti aos 69’, com um remate anormalmente frouxo), já João Neves manteve o registo de larápio de bolas. Na frente Doué, Barcola e Kvaratskhelia trocavam constantemente de posições, atrapalhando a organização do Arsenal. Donnarumma, aos 64’, voltou a salvar um golo certo, indo ao cantinho afastar uma bola que para qualquer outro guarda-redes seria indefensável. O golo de Hakimi, aos 72’, pouco depois do penálti não concretizado por Vitinha, tornou hercúlea a tarefa do Arsenal, ainda para mais perante uma equipa que nunca se desmoronou, nem nos primeiros dez minutos de blitz arsenalista. É certo que Saka ainda reduziu aos 72’ e pouco depois não empatou sabe deus como, no único erro de Donnarumma ao longo do jogo, mas a narrativa pareceu sempre controlada pelos franceses.
Talvez esse seja o grande mérito de Luis Enrique. Tornou um conjunto de jogadores numa fraternidade com igualdade de tratamento e obrigações também elas não distintas. Tornou mais próximo o derradeiro desejo do Catar da forma menos Catar possível, talvez até menos Paris possível. As luzes da Torre Eiffel, que se podem ver do estádio, deixaram de brilhar pelo luxo de ter, no mesmo onze, três dos melhores jogadores da história. Agora brilham porque a casa que começou a ser construída pelo telhado em 2011, um telhado incrustado com cristais e diamantes, tem, finalmente, alicerces fortes, construídos por talentosos trabalhadores, uma ideia muito mais poderosa do que a aleatoriedade que o dinheiro permite comprar.