Não há palavras, mas há, tem de haver, para Tadej Pogačar, o semideus do par de rodas que às vezes subjuga o ciclismo a uma espécie de solilóquio face à panóplia de proezas que vai conseguindo interligar. Ora então: já tinha três Tour de France e 17 etapas lá ganhas, fora um Giro d’Itália, quando se vestiu, em 2024, com os tons do arco-íris da licra de campeão do mundo, prova que esgravatou com um brutal ataque ainda a meio-mundo da meta, estratégica e cores que tem aplicado aos Monumentos, as corridas de um dia que desaguam em Flandres, Liège, Siena ou Roubaix de modo a canalizar a grandeza para o seu divertimento.

Depois dele, um degrau logo abaixo ou quiçá outro, custa precisar a distância mas o cerne é que ele não habita na mesma camada de atmosfera, está Remco Evenepoel, cujo sumário da carreira impressiona para um ser bípede mais terreno, sem tiques de Olimpo: vencedor de uma Vuelta, também já campeão mundial, em 2022, é o mais recente campeão olímpico, providenciador da imagem mais icónica dos últimos tempos quando sozinho chegou à meta posta com a Torre Eiffel no enquadramento, onde desmontou da bicicleta, ergue-a nos braços e esperou para que o obturador das máquinas fotográficas fizesse o seu trabalho. Sem a superioridade cósmica do esloveno e massacrado por lesões ao longo dos anos, o belga, contudo, é um dos nomes grandiosos desta geração velocipédica.

Este domingo, encachorrado entre estas duas catedrais do ciclismo, apareceu Mattias Skjelmose.

Da humildade do seu currículo é menos palavroso destacar os feitos. O dinamarquês já venceu duas provas, à Suíça e ao Luxemburgo, mas jamais arrecadou uma etapa das Grandes Voltas nem se impôs numa das clássicas apesar de integrar uma das equipas emergentes, a Lidl-Trek, ainda menor do que a UAE Team Emirates de Pogačar e a Soudal Quick-step de Evenepoel. Mas não largou os seus representantes, contra eles pedalou, cerrou os dentes e adiou até à reta da meta da Amstel Gold Race, este domingo, a decisão de quem acabaria a sorrir. Entre os dois monstros, os dentes postos de fora foram os do dinamarquês.

ANP

O derradeiro alcatrão dos 259,4 quilómetros da corrida de um dia serviu para uma disputa ao sprint entre os três. Foi Skjelmose, com os seus músculos a queimar nas pernas, o ar a rarear nos pulmões e o penso colado à cana do nariz para alargar as narinas na esperança de ajudar a aflição cardiorrespiratória, a ter reservas de energia para prevalecer. A vitória na clássica neerlandesa caiu nos pedais do menos laureado do trio.

Mattias Skjelmose estava na cauda da grupeta quando o sprint foi lançado e as bicicletas se deixaram das trajetórias retilíneas, passaram a desenhar ‘s’ devido às fortes pedaladas a que a busca por velocidade exige. Com a meta a aproximar-se, o dinamarquês aproveitou a proteção contra o atrito, largou a popa do tridente, estendeu a asa e deu o embalo para ultrapassar Pogačar e Evenepoel. O seu esforço pontuou uma corrida de gastos enormes: Tadej atacara sozinho (Julian Alaphilippe ainda o tentou acompanhar), à sua maneira, a 45 quilómetros do destino, forçando Evenepoel e Skjelmose a uma gregária parceria para o apanharem.

A três quilómetros do fim alcançaram o esloveno, mas nem o extraterrestre ou o belga olímpico, acabado de se consertar de uma lesão, tiveram pernas para o estafado dinamarquês, despido sequer de uma onça que fosse de energia, emocionado ao ponto da incredulidade: ao cortar a meta, chegado ao afago dos abraços de elementos da sua equipa, a cara de Skjelmose ainda era de espanto. "Acho que ganhei", soltou, tateando em volta com o olhar esbugalhado, em busca da confirmação.

O cume do pódio ficou com o nome de Mattias Skjelmose, vencedor da corrida com nome de cerveja que Pogačar não se privou de provar durante a cerimónia de entrega dos prémios.