Algures, perdida no Vale do Ave, há uma terra que não conhece as páginas da notoriedade desde que Camilo publicou "A Brazileira de Prazins". Uma terra onde se faz um bolo. Um bolo monumental, absoluto. Um bolo chamado jesuíta.

Alguns dirão que é só um doce. É mentira. É um tesouro comestível, uma obra-prima da gulodice. Elevado à sua forma definitiva na Confeitaria Moura, todo o pastel congénere fabricado em Portugal deveria mudar de nome por uma questão de consideração. Foi esse bolo que deu o nome ao clube da cidade. Não o contrário, vejam bem. Não a cidade ao bolo. Foi o bolo, que, em plena inversão ontológica, baptizou o Tirsense. Hoje são os jesuítas.

E a grande notícia desta quarta-feira, meus amigos, vem assim: vestida de negro, atravessando a lonjura dos tempos. Um grupo de homens teimosos, insensatos, eternos, mantém-se fiel à sua infância, à sua pureza, ao seu futebol. Ali, por trás dos muros do Abel Alves de Figueiredo, resiste-se aos avanços do tempo que apaga sotaques, uniformiza clubes e oblitera estádios. Ali, no Tirsense de Santo Tirso, onde o jesuíta reina impassível.

Ora, esta quarta-feira, está de regresso aos grandes palcos. Meio século depois, talvez um século depois! E enfrenta o Benfica, o colosso vermelho, na meia-final da Taça de Portugal. Não poderá ser em casa: o Abel Alves de Figueiredo já não cumpre as modernices regulamentares. Vão para Barcelos, como quem é exilado para o meio do mato. Uma estupidez, claro. Mas pouco importa. O fundamental é que o Tirsense ainda respira. Ainda treme. Ainda sonha.

Veja-se a pureza: nem uma SAD aquela agremiação ousou constituir! Nem um oligarca de segunda, nem um mafioso de quinta categoria ousou meter ali as mãos sujas. Ninguém. Santo Tirso, vila perdida a meio do caminho entre Braga e o Porto, é também uma cidade a salvo. Ainda bem. O Anadia foi destruído por quatro brasileiros e um russo, o Desportivo das Aves transmutou-se num espectro miserável de três letras chamado AVS. O Belenenses tarda em reaparecer. Mas o Tirsense não. O nosso Tirsense segura a tocha imortal da verdade futebolística.

Não por heroísmo. Nem por resistência. Mas — e eis o sublime! — por uma mistura de incompetência, calotice e amadorismo. Desde a dívida da bancada nova — nova ao tempo de Guterres — que Santo Tirso se defende com a sua própria miséria, a sua própria glória. Que Deus os conserve e ajude. Diz-se que pode ser paga com a receita da bilheteira destas duas mãos da Taça.

E eu, que fugi de Santo Tirso como Dylan do Midwest, confirmo: muito mudou. Muito se perdeu. Menos em Santo Tirso. E isso é encantador. Tudo igual: o mesmo estádio, a mesma rua inclinada no mesmo ângulo, as mesmas tabuletas. Nem uma borboleta saiu do lugar. E a bola ainda é redonda dentro do velho Abel Alves de Figueiredo. Ainda geme e vibra nas margens do Rio Ave.

Já não há Caetano, o braço felpudo, o velho capitão. Mas joga João Martins, filho da terra. Já não grita a Força Negra, e Caninha Verde, enfarte ambulante, bombeiro com esmero, desapareceu entre tambores e memórias. Mas mexe a Juve Negra, que canta aos quatro ventos: "É Tirsense, é Tirsense, é p’ra vitória, é p’ra vitória!"

E eis que surgem, das trevas da memória, visões de criança: ir aos jogos sem pagar; o penálti do Oceano que foi parar à Estrada Nacional; os árbitros apedrejados à entrada do campo; ou aquele dia em que o pobre juiz, que não ia de preto, ouviu de um homem, tomado pelo fervor: "Camelo branco! Camelo branco!"

E o grande jogo da Taça contra o Benfica, em 96/97. O Tirsense já estava na Segunda Divisão. Dimas, na esquerda, enche o pé — remata com estrondo, não para a baliza, mas para a testa do homem ao nosso lado. O infeliz desmaia, ressuscita e ainda pergunta: “Quem marcou?”

Nos dérbis contra o Trofense e o Aves, era a Idade Média em todo esplendor da sua inocência. Iam porcos e galinhas para dentro do campo. As bancadas, como num combate, vibravam: "É Tirsense, é Tirsense..."

Antes, claro, houve 94/95: a temporada das temporadas. Das páginas da caderneta da Panini para os relvados. Marcelo, Paredãoe Giovanella, monstros que aterrorizavam os Domingos portugueses. A SIC, também ela uma criança, pagou a iluminação do estádio em troca das transmissões do “Tirsense, equipa sensação do campeonato” — era assim que diziam os reclames. Ainda hoje, quando um redactor desavisado escreve “equipa sensação do campeonato”, é ao Tirsense que, sem saber, está a prestar homenagem.

O futebol já foi outra coisa. Um caso de família, de bairro, de dívidas antigas que só se resolviam Domingo à tarde. Dentro dos muros daquele estádio o futebol ainda é sério, ainda é verdadeiro. Deus o conserve.

O Benfica enfrenta o velho Tirsense. Dirão: “Uma formalidade de calendário.” Talvez seja. E, francamente, tudo bem. Quero ver o Benfica no Jamor a erguer a Taça como só os grandes clubes a sabem erguer.

Mas quem olha para o Tirsense e vê apenas uma equipa da Quarta Divisão perdeu a fé. Perdeu a chama. Perdeu a bola. O essencial, meus amigos, é que hoje se joga futebol. O verdadeiro. O puro. Um jogo de pessoas que estão vivas. E se Deus quiser, quando soar o apito final, alguém há-de erguer ao céu um jesuíta — como se fosse o troféu da nossa infância.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.