Game, set, match. Um jogo de ténis acaba, há um felizardo a encaminhar-se para a rede onde um tristonho o encontra, trocam um passou-bem, depois cumprimento o árbitro e as vidas a que cada um vai são distintas. O derrotado arruma a trouxa, ruma ao balneário despedido se tudo correr bem por um aplauso do público; ao vencedor tocam mais uns minutos em campo para quem está na bancada lhe ouvir a voz. Ultimamente, Ben Shelton não tem apreciado as deixas estendidas pelos entrevistadores aos tenistas vitoriosos no Open da Austrália.

Lá em baixo nos antípodas, o norte-americano tem feito luzir os seus braços esculturais e destapados por um equipamento sem mangas. Jovem de um serviço-martelo e uma pancada de direita sísmica, Shelton derrotou, esta madrugada, o italiano Lorenzo Sonego (6-4, 7-5, 4-6 e 7-6) para garantir as segundas meias-finais de um Grand Slam da sua curta carreira. Com o fio de prata a pender no peito, fita na testa a barrar a sua melena encaracolada, o tenista ficou no court para responder a perguntas a quente, como cabe a qualquer vencedor. Foram três questões, parafraseando-as:

“Como te sentes?”

“Passaste às meias-finais, vais jogar contra o Jannik Sinner ou o Alex de Minaur, o público vai estar do lado de quem quer que seja, não vai?”

“Há muitas bandeiras americanas nas bancadas, que tenhas a melhor das sortes.”

A cada uma Ben Shelton respondeu, risonho e bem-disposto, durante minuto e meio. Mais tarde, de capuz a cobrir-lhe a cabeça apesar de sentado na sala de conferências de imprensa, ao fim de 11 minutos, quando já respondera a todas as perguntas, o norte-americano de 22 anos quis deixar uma opinião acerca do que “da forma como os broadcasters têm tratado os jogadores” após os jogos. “Fiquei um pouco chocado. Acho que deviam ajudar os atletas que acabaram de ganhar num dos maiores palcos a desfrutar de um dos seus melhores momentos”, desabafou, por sentir que “tem simplesmente havido muita negatividade”.

Icon Sportswire

O norte-americano, de 22 anos, queixou-se do seu caso, visando a segunda questão que o entrevistador - que não era jornalista, como nenhum o é - lhe colocou. “Há comentários feitos na entrevista pós-jogo por pessoas diferentes, como hoje, ‘hey, Ben, como te sentes por não importa quem seja o adversário, ninguém vai estar a torcer por ti?’”, lamentou o tenista, após lembrar o que lhe disseram na partida que venceu a Gael Monfils, que aos 38 anos ainda se destaca nestas andanças: “Disseram, ‘hey, o Monfils é velho o suficiente para ser teu pai. Se calhar é teu pai.’” Para ambos os casos, Shelton argumentou, esta quarta-feira, que “talvez sejam verdade”, mas não acha que “os comentários sejam respeitosos” vindos de “um tipo” que “nunca [conheceu] na vida”.

Ao expressar o seu desagrado, Shelton aludiu ao caso de Learner Tien, outro norte-americano e seu mais novo, protagonista da maior surpresa do quadro masculino quando eliminou Daniil Medvedev, três vezes finalista do Open da Austrália (incluindo na edição passada). Acabado de vencer o russo na segunda ronda, o entrevistador disse-lhe que “não é suposto” um jogador “de 19 anos ser assim tão bom”, perguntando de seguida, a um tenista profissional, se conhecia sabia quem era Corentin Moutet, o seu próximo adversário - o 69.º classificado do ranking mundial, a quem trataria de ganhar na ronda seguinte. Essa entrevista, lamentou Shelton, foi “embaraçosa e desrespeitosa”.

Ao humorizar a sua intervenção jornalística, fez a sua piada tocar na ferida recente entre Djokovic e a Austrália: em 2022, ainda bem durante as restrições da pandemia, o jogador foi deportado do país após lá aterrar sem estar vacinado contra a covid-19 e passar alguns dias num hotel convertido em centro de detenção. Antigos e atuais tenistas, como Boris Becker ou Viktoria Azarenka, logo criticaram a intervenção do jornalista e, no dia seguinte, Djokovic recusou falar na entrevista em campo ao derrotar Jiri Lehecka, preferindo gravar um vídeo a explicar a sua não comparência. “O jornalista do Channel 9 decidiu gozar com os fãs sérvios, fazendo comentários insultuosos e ofensivos contra mim. Espero que peça desculpa em público”, disse o sérvio, por sua vez pedindo perdão às pessoas que o queriam escutar.

Mais tarde, Tony Jones usou o mesmo palco para possibilitar o fim do boicote de Djokovic.

Shi Tang

Ao retratar-se, o jornalista reconheceu ter “ultrapassado as marcas” com a menção de “chutem-no para fora” associada a quem, de facto, tem uma traumática deportação no seu histórico. “Isso enfureceu-o, o que compreendo totalmente. Considerei que o que fiz foi humor, o que é consistente com a maioria das coisas que faço. Contactei imediatamente o Novak para lhe pedir desculpa se o desrespeitei, soube que não ficou contente”, revelou o funcionário do canal que formalmente também apresentou as suas desculpas. A repercussão do caso até chegou ao primeiro-ministro australiano. “Precisamos de mais gentileza, generosidade e respeito em todas as áreas, acho que é isso que as pessoas pretendem”, resumiu Anthony Albanese, certeiro face às chamas dos tempos que vivemos.

Na confissão do seu desgosto, Ben Shelton recordou que “o tipo que gozou com o Novak não é um caso único”, apelando a que “algo precisa de mudar” no trato dado aos tenistas na ressaca imediata dos seus jogos.

Se é natural, como sucedeu a Novak Djokovic após ultrapassar Carlos Alcaraz nos quartos de final, que ter um entrevistador como Jim Courier equivalha a receber questões a pender mais para o técnico, detalhando pormenores do jogo - o norte-americano é um antigo tenista com quatro Grand Slams no currículo -, ou o mesmo até de um mais distraído John McEnroe, lenda vida, mas não tão a par da atualidade do ténis, a mesma sensibilidade não será transversal a todas as pessoas destacadas para interpelar os jogadores logo após as partidas. “Acho que nos deviam ajudar a fazer crescer a modalidade”, pediu Ben Shelton.

No desabafo do norte-americano da Florida, outrora campeão universitário e apenas no seu segundo ano enquanto profissional, terá faltado um dos pontos que se intrometerá nessa missão: o desejo de quem promove o Open da Austrália, ávido por engajamento, cliques e audiências, pode ter as antenas dessintonizadas com o que ele, um tenista, acha que é o melhor para o ténis crescer.