
No domingo passado, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos elevou para 830 o número de civis executados no litoral da Síria, numa ofensiva das forças de segurança em resposta a ataques de milicianos alauitas, embora o número total de mortos ultrapasse os 1.300.
"Claro que tem havido muitos incidentes que as pessoas podem observar", lamentou Azmeh.
"Mas não houve vinganças em massa a acontecer entre comunidades que estavam em diferentes divisões políticas. E por isso estou otimista", sublinhou o clarinetista.
Os alauitas são uma minoria xiita, que integra cerca de 15% da população síria, ou seja, cerca de três milhões de pessoas, e que apoiava o regime do antigo presidente Bashar al-Assad, deposto em dezembro. O grupo que atualmente controla o poder no país é sunita.
"A tolerância dentro da sociedade síria é uma cultura muito profunda que passou por milénios de transição. Esta é uma transição menor quando se pensa na cultura de tolerância que existia naquela parte do mundo", defendeu Azmeh.
Na quinta-feira, o Presidente interino da Síria, Ahmad al-Chareh, assinou uma declaração constitucional que promete respeitar as liberdades de expressão e de imprensa e os "direitos sociais, económicos e políticos" das mulheres.
Apesar de estar "super entusiasmado", Azmeh sublinhou que a relação com o Governo de transição "não tem de ser um caso de amor".
"Temos de exigir esse processo democrático. E temos de responsabilizar cada figura de autoridade", disse o compositor.
"Temos de nos sentar e discutir que tipo de país queremos, não só para nós, mas para os nossos filhos e netos, etc. Tem de representar o que eu quero, mas também tem de representar o que o meu vizinho quer", sublinhou Azmeh.
Em 01 de março, o quarteto de música árabe e jazz Kinan Azmeh Cityband lançou o álbum "Live in Berlin", com músicas escritas depois do início da guerra civil, em 2011, e "inspiradas pela luta do povo sírio", diz o compositor.
"Tocar estas músicas agora, depois da queda da tirania, é algo que cheguei a pensar que nunca fosse acontecer", admitiu Azmeh.
Após mais de 13 anos de guerra civil, o grupo radical islâmico sunita Hayat Tahrir al-Sham (HTS) liderou uma coligação de fações rebeldes numa ofensiva que, em apenas 11 dias, derrubou Assad, que a 08 de dezembro fugiu para Moscovo com a família.
"A rapidez com que isto aconteceu foi uma surpresa. Mas parte de mim manteve o otimismo ao longo dos últimos 14 anos", diz Azmeh.
Enquanto os sírios estavam colados às televisões e os telemóveis a tentar perceber o que se passava, o compositor estava a tomar conta do pai, que acabou por morrer de cancro, um dia depois de o HTS chegar a Damasco.
"Ele sempre disse que este tirano iria cair. E por isso mesmo estou muito grato porque ele conseguir testemunhar aquele momento", disse Azmeh, radicado nos Estados Unidos.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, cerca de cinco milhões de sírios fugiram do país devido à guerra civil. O próprio Azmeh tem atualmente familiares em França, Reino Unido, Alemanha e Qatar.
O compositor admitiu ser impensável "esperar, de uma forma muito romântica, que agora toda a gente vá deixar as suas vidas para trás e simplesmente voltar" para a Síria.
Mas, acrescentou, os sírios devem regressar -- "e não tem de ser com um bilhete só de ida" -- para ajudar.
"Reconstruir o país exigirá, naturalmente, muitos esforços internacionais para colmatar esta incrível lacuna financeira, mas também pessoas com conhecimento e experiência podem contribuir de muitas formas diferentes", disse Azmeh.
O compositor está a planear para abril uma visita a Damasco e a outras cidades da Síria para dar 'workshops' e aulas a músicos locais, "porque muitos clarinetistas, por exemplo, estudam sem professores há anos".
Azmeh quer também levar o seu quarteto, "quem sabe no outono, numa digressão pela Síria, o que seria um sonho tornado realidade".
A cultura pode não ser a prioridade do Governo da transição, mas o músico sublinha que "restaurar a alma humana também é importante".
Durante a guerra civil, Azmeh visitou campos de refugiados para trabalhar com crianças sírias.
"E mesmo que parecesse incrivelmente irrelevante, ver o quão felizes estas crianças estavam a fazer música naquela altura, para mim foi uma recompensa incrível", diz o clarinetista.
Além disso, lembrou Azmeh, "dar a uma criança uma educação completa e saudável deve certamente ter as artes no seu centro, porque a arte ensina-nos a interagir com o mundo de uma forma muito pacífica".
A arte "permite que as comunidades se reúnam e que as pessoas também trabalhem em conjunto", sustentou.
"E penso que isso é muito importante, dado o momento que a Síria atravessa", disse o músico.
Afinal, depois de 14 anos de guerra, a Síria "pode agora voltar a cantar", garantiu Azmeh.