
"As árvores caem e o seu bafo meio moribundo quando chega ao solo emite um som que parece o de socorro. Os animais guincham com a sua voz particular e analfabeta, mas que sabe coisas que são bem audíveis nesses guinchos que atravessam bosques e montanhas e que quando entram nas cidades imobilizam tráfego e semáforos, os candeeiros apagam-se e fica noite subitamente em todo o lado porque a eletricidade é sensível a uma certa frequência do medo que vem nos guinchos dos animais mais antigos", escreve o autor.
Gonçalo M. Tavares lembra, contudo, que há quem escreva poesia "com as costas curvadas" ou "em bicos de pés, como uma bailarina, tentando escrever as palavras mais altas num ponto mais alto, como se a vida fosse simples e métrica e a poesia aparecesse só a partir de certa altitude do humano".
O escritor continua, acrescentando que "altitude é uma palavra que também deve ser usada para os humanos e não apenas para o avião ou para a montanha".
"E sim: o mundo está sonoramente doente e a cegueira é também por vezes uma forma terrível de descansar. As imagens vêm doentes já, à partida, a coxear e com nacos delas mesmas a cair no chão a cada passo. As imagens que recebemos estão mesmo doentíssimas, constipadas, as mais delicadas, umas outras com doenças absolutamente terminais; muitas com doenças contagiosas: vês e ficas parvo, vês e ficas tonto, vês e ficas louco, vês e ficas com cirrose, vês e ficas com sífilis, vês e ficas com gangrena que ofereces no natal como espetáculo à família, mesmo que de modo involuntário", considera o autor.
Na opinião de Gonçalo M. Tavares, "as imagens são coisas perigosas, são os animais que andam por aí bem mais contemporâneos dos lobos do que se pensa; as imagens caçam humanos com os seus dentes cheinhos de tédio e pressa: tenho tédio e tenho pressa, sai da frente, quero aborrecer outro, quero chocar outro".
"E o humano vai resistindo como pode, pega num guarda chuva para combater um furacão e por vezes num livro de poesia para pousar sobre a terra que começa a tremer num terramoto de escala aterradora".
Mas esse terramoto "não se comove com o livro de poesia ingenuamente colocado sobre o solo", pois "no real abananço da vida normal vai livro, vai mão, vai o teto de século XVI tão lindo, vai a fachada inteira, o prédio rombo rui agora para sempre e, no meio dos destroços, os obcecados os desvairados os distraídos estarão, quem sabe, dias e dias em processo em tentativa de recuperar, no meio dos escombros, um original qualquer de poesia, passando ao lado de mãos que pedem ajuda e de urros humanos que manifestam com essa voz animal que ainda respiram e querem viver", lembra o escritor.
Mas sim -- admite -, alguns "obcecados" pela poesia "resgatam dos escombros do século XXI um livrito de versos, sacodem a poeira, tentam perceber se as metáforas estão legíveis e belas e imediatamente inauguram um belíssimo recital de poesia com chá de menta e bolos secos, daqueles de manteiga, meio torcidos, que se esfarelam nos dentes" como se fossem eles mesmos "pedaços de escombros" feitos de manteiga e açúcar, "péssimos para a saúde cardíaca e do sangue que está lá por dentro".
"E é isso: por vezes existe mais produto interno de metáforas na urgência bruta do dia do que em livros encadernadíssimos", sustenta, concluindo: "Mastiguemos, então, biscoitos e imagens sentados no sofá sonolento e brindemos ao poente por vir em que resolver urgências se torne belo".
Adotado pela Organização das Nações Unidas para a Cultura, Educação e Ciência (UNESCO, na sigla em inglês) em 1999, o Dia Mundial da Poesia pretende "homenagear poetas, reviver tradições orais de recitais de poesia, promover a leitura, escrita e ensino de poesia, e fomentar a convergência entre a poesia e outras artes".
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