
O município da Figueira da Foz autorizou uma intervenção artística que questiona o legado colonial de objetos expostos no museu da cidade, mas demarcou-se da iniciativa, revelou o presidente da Câmara Pedro Santana Lopes.
Ouvido pela agência Lusa sobre a iniciativa intitulada "Confrontar o legado colonial no museu", aberta ao público desde o final do dia de quarta-feira, no Museu Municipal Dr. Santos Rocha, Santana Lopes explicou que o projeto vem do anterior mandato autárquico, proposto pela Universidade de Évora, e que a atual Câmara entendeu mantê-lo, embora podendo discordar das abordagens feitas sobre o tema da descolonização.
A intervenção artística surgiu no âmbito do projeto Transmat e da conferência internacional "Descolonizar museus e coleções coloniais: para uma agenda e métodos transdisciplinares", que termina hoje na cidade litoral do distrito de Coimbra, e na qual nenhum elemento do executivo municipal marcou presença.
"Isto foi decidido antes de mim e eu não ia correr o risco de ter um novo caso Saramago. Não gosto, não tenho de gostar dos conteúdos de todos os congressos que se fazem na Figueira", argumentou o autarca.
"Eventualmente, é um debate que deve ser feito, a Figueira é uma terra de liberdade, mas que se respeita a si própria. O município não proíbe, não cerceia a liberdade de ninguém, mas ninguém [do executivo] vai lá. Assumo a nossa história com honra e honramo-nos muito da coleção do museu municipal", acrescentou Santana Lopes.
A instalação artística incide sobre a sala de Etnografia do Museu Dr. Santos Rocha, onde estão expostos, desde 2014, objetos, esculturas e outras peças oriundas de Angola e Timor, doadas em 1903 por um militar.
À exposição original foram sobrepostas frases, em português e inglês, coladas nas vitrinas, sobre a origem colonial das peças, contestando alguma da informação até agora disponível, existindo também pequenos textos sobre o militar que as doou -- com referências a pilhagens, saques e violência no contexto de uma guerra em 1902 -- ou reproduções de jornais da época.
Foi criada uma iluminação especial, sendo que esta e as frases e colagens existentes reduzem a visibilidade direta das peças, objetivo assumido pelos promotores.
A organização abriu ainda a possibilidade de os visitantes escreverem as suas opiniões diretamente no vidro das vitrinas, com recurso a marcadores de cor branca.
A intervenção, e em especial a metodologia utilizada, tem causado desconforto entre técnicos e funcionários do museu municipal, que o manifestaram à Lusa, embora recusando ser identificados.
O arquitecto Miguel Figueira, responsável pela conceção da instalação, em conjunto com os designers José Albergaria e Chantal de La Coste, assumiu que a iniciativa de que é coautor visa inquietar os visitantes e provocar o choque e reações, levando ao diálogo.
"Não podendo mexer em nada dos objetos expostos, abriu-se a possibilidade de podermos mexer no vidro das vitrinas, onde colámos uma série de informação e foi permitida a interação do público e dos conferencistas que nos visitam", disse Miguel Figueira, numa alusão aos marcadores já usados pelos investigadores presentes na conferência.
"O museu tem de aceitar ser um espaço de diálogo e, eventualmente, aceitar comentários que nos façam refletir e não sejam aqueles mais fáceis", advogou.
Frisou que algumas das frases colocadas nas vitrinas "são sobretudo interrogações" que refletem as dúvidas de quem concebeu a instalação, face às novas narrativas decorrentes da investigação, embora, conforme constatou a Lusa, ao não estarem pontuadas como tal, as frases passem por afirmações.
"Pretendemos expor essas dúvidas, partilhá-las e abri-las ao debate e ao visitante", vincou Miguel Figueira.
O arquiteto admitiu, no entanto, que existam resistências perante o projeto: "É uma resistência natural, estamos num momento diferente e estas instituições são muito conservadoras, têm de ser, é o lugar da conservação e ainda bem, porque assim se preservam os objetos. Agora, hoje em dia, este debate da descolonização está em todo o lado na nossa sociedade, mas também tem de estar dentro do museu", enfatizou.