
No Serviço Nacional de Saúde (SNS) existem hoje profissionais de saúde que têm contratos parciais de 10 horas semanais com instituições públicas, enquanto acumulam, na mesma unidade, dezenas de horas de cirurgias ou consultas pagas ao ato, atingindo remunerações mensais que ultrapassam as dezenas de milhares de euros.
Ao mesmo tempo, assistimos à realidade de médicos que circulam entre hospitais acumulando turnos consecutivos de 24 horas em prestação de serviços, preferindo esta modalidade "flexível" em detrimento de contratos estáveis e integrados. Geralmente contratados através de empresas, sem cuidar de saber quem são ou que competências e formação têm. Compram-se “horas de médico” através dos departamentos de compras, num processo exatamente igual ao que se usa para comprar parafusos, luvas ou qualquer material/equipamento. Como chegámos até aqui?
Em 1961, Miller Guerra e um conjunto de colegas médicos apresentaram um relatório visionário sobre as carreiras médicas, no qual defendiam um sistema estruturado, com carreiras sólidas, concursos públicos, formação contínua, valorização do mérito profissional e forte integração dos médicos nas equipas hospitalares. Este documento histórico tornou-se um pilar essencial do futuro Serviço Nacional de Saúde, destacando que só profissionais motivados, integrados e continuamente formados seriam capazes de assegurar um serviço público de saúde universal e de elevada qualidade.
Os autores do relatório percebiam claramente que o desenvolvimento profissional e científico não poderia acontecer num ambiente de precariedade ou de mera prestação episódica de serviços. Na verdade, e mesmo tendo sido elaborado focado apenas nas carreiras médicas, este é um conceito alargável a todas as restantes profissões da saúde.
Contudo, nas últimas décadas, o sistema parece ter-se afastado deste princípio fundador. A escassez de profissionais, associada à pressão para aumentar rapidamente a produção em saúde, levou à proliferação de contratos precários, pagamentos por ato médico e regimes remuneratórios por hora. Estas modalidades, inicialmente concebidas para resolver necessidades pontuais, tornaram-se regra em muitas instituições, criando uma lógica centrada na produtividade imediata e menos no desenvolvimento coletivo das equipas e dos serviços.
Neste novo paradigma, a integração do profissional na instituição é mínima ou inexistente. Perdem-se componentes essenciais que Miller Guerra tanto defendeu, como a formação contínua estruturada, a elaboração conjunta de protocolos clínicos, a revisão sistemática de casos clínicos e a capacitação progressiva de jovens médicos. O foco deixou de estar no crescimento integrado do serviço e passou a estar exclusivamente na realização máxima de atos médicos num período curto, seguindo depois rapidamente para a próxima instituição ou turno.
Esta tendência, embora financeiramente atraente para muitos profissionais, gera consequências negativas evidentes: fragmentação das equipas, diluição do compromisso institucional e dificuldade em garantir padrões consistentes de qualidade assistencial. Não raramente, promove-se uma competição negativa entre instituições pelo "tempo" dos profissionais mais solicitados, em vez de se investir no fortalecimento das próprias equipas internas.
É urgente refletirmos sobre esta realidade. Sem procurar culpados individuais, mas antes analisando criticamente o sistema que permitiu e incentivou este cenário. Será que é este o modelo de trabalho que queremos promover no SNS? Será sustentável, a longo prazo, depender de uma lógica fragmentada e centrada na produção isolada
Precisamos de repensar o modelo atual para promover estabilidade contratual, melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional, formação continua de qualidade, integração plena dos profissionais nas equipas e valorização do crescimento profissional coletivo, essencial para a qualidade sustentada dos cuidados de saúde. Só assim poderemos assegurar que o SNS se mantenha fiel aos princípios de universalidade, qualidade e equidade.