Ir à bola, coloquial expressão que remete ao futebol, constitui ato para muitos de implicações familiares. Toca a reunir os filhos, a motivar a parelha conjugal, a alentar um pai ou uma mãe e andor rumo ao estádio, ou ao sofá virado para a televisão lá de casa, para uma desportiva versão da comunhão. Esse ato harmónico pode ter ditames religiosos, significa também receber um sacramento e por cá, catolicamente falando, o auge está num majestoso santuário no distrito de Leiria onde a cada ano peregrinam milhares de pessoas movidas pela fé, por uma promessa feita ou pela crença de que algo imensurável e superior a nós controla tudo a partir do além, um fadário perante o qual nada se pode.

Chamem-lhe mito, prefiram o adágio ou optem por designá-la como expressão. De forma simplória, diz-se que Portugal é regido por Futebol, Fado e Fátima, os três Fs vindos do peso exercido no povo pela modalidade mais seguida, a religião com mais devotos e o estilo de música inventado no país, sedutor do melancolismo. Não havendo, em concreto, um evento específico que se associe ao apogeu do F musical, os outros dois têm chamarizes concretos. E dá-se o caso, uma vez mais, de ser possível que um ato eleitoral, onde por génese se quer a participação do maior número de cidadãos adultos, calhe no mesmo dia de Fátima e do Futebol.

Abertas as portas de Belém por Marcelo Rebelo de Sousa, na quarta-feira, para receber e falar com os líderes dos partidos com assento parlamentar, um deles descaiu-se à saída, dando conta que a data preferida do Presidente da República para convocar eleições antecipadas será a 11 de maio. Nesse domingo já muita gente estará a caminho de Fátima para celebrar o dia de Nossa Senhora de Fátima, feriado que religiosamente junta milhares de pessoas no Santuário da cidade. E para esse fim de semana está agendada a penúltima jornada da I Ligae nesse dia poderá haver um Benfica-Sporting, dérbi lisboeta entre dois dos três clubes com mais adeptos em Portugal. Tudo ainda são meras suposições: está por confirmar quando será a ida às urnas e falta que a Liga de Clubes, lá mais para a frente, marque o horário e o dia exato dos jogos.

Caso a coincidência se concretize, não será inédito.

Em 2015, por exemplo, os três ditos grandes do futebol português jogaram no mesmo dia das eleições legislativas, em outubro, ainda com o campeonato em fase imberbe e longe da fase das decisões. Foi a primeira vez na história de democracia portuguesa que houve partidas de futebol jogadas no mesmo sol em que o país foi chamado às urnas. Abriu-se então a porta para a tácita tradição de não haver bola em tais ocasiões ser quebrada: aconteceu de novo nas presidenciais de 2016 e nas autárquicas de 2017, ano em que chegou a haver notícias, citando fontes governativas anónimas, de que o executivo socialista de António Costa pretendia congeminar uma lei para proibir a marcação de jogos de futebol para dias de eleições. Nunca foi além de ser um zunzum.

A mais recente sucedeu em 2024, quando foi eleito, a 10 de março, o primeiro-ministro do Governo agora caído. As anteriores eleições legislativas calharam no fim de semana da 25.ª jornada do campeonato nacional e logo em dia de dois jogos: o Sporting jogou em Arouca, ao final da tarde, antes de o Benfica defrontar à noite, no Estádio da Luz, o Estoril Praia. Desta vez, estando Marcelo Rebelo de Sousa atraído pelo 11 de maio, o chamamento às urnas poderá partilhar dia com um encontro entre os dois rivais de Lisboa, na zona onde há maior densidade populacional no país. Caso opte pela outra data possível que tem sido noticiada, o 18 de maio, coincidirá com a derradeira jornada da I Liga.

A abstenção e as regras

Não havendo um oráculo nem bolas de cristal videntes, tanto num como no outro fim de semana o fado de quem será o campeão nacional já poderá estar decidido - ou não, e isso tem influência no grau de distração que o futebol pode ter em dia de ir votar. A taxa de abstenção em Portugal nunca se explicará somente por um motivo, mas eis os números quando houve eleições a coincidirem com futebol: 44,1% nas legislativas de 2015; as presidenciais de 2016 registaram 51,1%; as autárquicas do ano seguinte ficaram nos 45% e, o ano passado, o sufrágio para compor a Assembleia da República teve 33,8%. Foi o valor mais baixo de abstenção desde 1995.

Nunca tendo ido para a frente a outrora intenção do Governo socialista em legislar para impedir o cruzamento do futebol com as urnas políticas, as únicas escrituras que afetam este tipo de situações vêm da Comissão Nacional de Eleições (CNE).

Nas suas regras, porém, o que está escrito é vago. No site da entidade lê-se que os espetáculos desportivos não estão proibidos desde que “a sua realização” não coloque “em causa o exercício do direito de voto por parte dos participantes”. Na prática, a coincidência de eleições com jogos de futebol não impede que uma pessoa se desloque ao seu local de voto. A CNE sublinha que “em eventos que impliquem a deslocação de eleitores para fora dos locais em que estejam recenseados devem criar-se condições para que estes possam votar”, o que está acautelado pela hipótese do voto em mobilidade ou antecipado - os eleitores podem votar no sétimo dia anterior ao da eleição, numa mesa de voto antecipado escolhida pelo próprio.

Em 2015, quando o precedente foi escancarado, João Almeida, porta-voz do CNE, disse ao "Público" que era "pouco sensato misturar as duas coisas", com a ressalva: "Não é proibido, mas não é recomendável."

Não que tenha havido eleições nessa ocasião, mas, em 2017, dois dos Fs emparelharam a sua realização, embora sem eleições ao barulho: no dia em que o Benfica de Rui Vitória conquistou o título nacional estava em Portugal o Papa Francisco, de visita a Fátima enquanto a costela encarnada do país fervilhava com o futebol. Antes, em 2000, o Sporting saciara o jejum de 18 anos sem ser campeão no mesmo fim de semana em que farta romaria desaguou em Fátima para se juntar ao Papa João Paulo II. Nessas vezes não houve política a colidir com as devoções do povo português.

Em todas as vezes que o futebol apareceu na agenda com eleições, o presidente da Liga de Clubes era Pedro Proença, antigo árbitro chegou, em fevereiro, à presidência da Federação Portuguesa de Futebol. A Tribuna Expresso questionou a entidade que organiza os campeonatos da I e II divisões do futebol nacional acerca da sua disponibilidade em, caso seja necessário, agendar pelo menos os jogos dos grandes para que não calhem num domingo de ida às urnas. Não obteve resposta até ao momento.