
Viram o Rodrigo Mora este fim-de-semana? Não viram; deviam ter visto. E deviam ter vergonha. De repente, o mundo suspendeu a sua giratória — e giraram os pés do Rodrigo Mora. Numa valsa lenta, exuberante, inevitável.
É que o Mora não joga com a bola. Mora joga com um segredo. E quando, num rasgo de generosidade, decide mostrá-lo, fá-lo quase a pedir desculpa. Com a melancolia incurável dos predestinados. Como se nada daquilo fosse com ele. Como se fosse apenas um instrumento. Um vidro fosco. Um portador. Como se fosse — o nosso Paulinho Cascavel.
Neste momento, o leitor franze a testa e pensa: — “Paulinho Cascavel? Como assim? O do Vitória? Do Sporting? O brasileiro?”
Nada mais errado. Falo de outro. Do verdadeiro. Do único. Paulo Alexandre Carvalho da Silva. De Areias. De Santo Tirso. De Portugal. Jogava tanto, com tamanha realeza, que o nome que lhe deram era pouco. Precisava de um nome com uma coroa. Certo dia, num recreio, alguém disse: “Paulinho Cascavel!” E ficou. Porque era ele.
Todo o pátio de toda a escola tem a sua lenda. Um pequeno D. Sebastião de chuteiras. O herói trágico de um futebol que não aconteceu. Aparece aos seis. Encanta aos sete. Desaparece aos quinze. E toda a lenda tem o seu tempo. A sua década. O seu crepúsculo. Em Santo Tirso, nos anos 90, foi ele.
No sistema de escolhas do futebol-de-intervalo o Paulinho era sempre aclamado capitão — porque todos queriam jogar ao seu lado: os irmãos mais velhos, os vigilantes, os adversários. Jogava com todos, mesmo sem precisar de ninguém. Porque o Paulinho, como os maiores, como os santos, tinha em si o aceno magnânimo. Mesmo que a bola se recusasse a abandoná-lo, ele dava-a, fazia o passe — o gesto mais caridoso de todo o futebol. Até aos cepos como eu.
O futebol era a Primavera, e a bola a abelha junto de sua flor, numa afeição mutuamente necessária. O Paulo jogava com a alegria dos inocentes. Era a graça sem esforço, sem vaidade e sem metáfora. O nosso Baggio, o nosso Rui Costa, o nosso mundo inteiro. Silencioso e puro — uma Cordélia com um número 10 nas costas.
Claro que era futebol a mais para aquele recreio. Por isso, já jogava no ARCA — o mesmo onde brilhou Ricardo Rocha — até que o Manelzinho do Tirsense o levou. Era o destino com dê maiúsculo. E foi aí, aos onze anos, que tudo pareceu confirmar-se. Um torneio internacional em França. Equipas estrangeiras. Campos a sério. E o Paulo brilhou. Um emissário do Boavista aproximou-se. Havia interesse. Queriam levá-lo.
Mas do Abel Alves Figueiredo até ao Bessa era uma travessia. Mudar de clube, de escola, de amigos. Mudar de mundo. Em 1994, a grande cidade era ainda um monstro. E o futebol não vinha com motorista nem psicólogo. O Boavista hesitou. O Tirsense endureceu. Pediram dinheiro. O outro lado recuou. “Miúdos de onze anos há muitos”, terão dito. E o Paulinho ficou.
O futuro, que era largo, começou a encolher. Deixou de ser “ele e mais dez” para ser apenas “só mais um”. Ele, que era dos mais altos e mais fortes, tardava em dar o salto. Como se o próprio corpo reagisse ao “E se?” que lhe ficou entalado na alma.
A vida seguiu o seu caminho. Mas com o som ligeiramente abafado. Não era homem de livros. Não tinha grandes planos para grande coisa. Num tempo em que se adiava a tropa para não adiar a vida, ele foi para a tropa para ganhar algum tempo.
Nunca chegou a jogar como sénior pelo Tirsense. A camisola que seria sua foi ficando na cruzeta. À espera de um corpo que já não viria. Jogou por clubes pequenos, em campos menores. Onde os balneários cheiram a detergente barato e sopa de couve. Depois, desapareceu.
Quando nos cruzamos, pergunto-lhe pela loja. Trabalha numa casa de artigos desportivos. Ele responde com um sorriso onde ainda cabe tudo. O talento. A memória. A ironia. O ocaso. A paz. Porque o Paulo sempre soube uma coisa que vos vou dizer agora e que é vital: o futebol é só uma das formas possíveis de perder com elegância.
Mas depois — depois eu vi o Mora a fazer aquilo. Talvez tenha sido o domínio com o lado de fora do pé direito. Ou o rosto sereno. Ou então porque, naquele instante, o mundo pareceu endireitar-se. Como se tivesse cabido ao Rodrigo do Porto cumprir o destino do Paulinho de Areias. Como se, aos 20 minutos de jogo, nesse movimento imperturbável, nessa noite de Domingo no Bessa, o futebol se tivesse tornado em promessa saldada com atraso.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.