
Vivemos uma transição silenciosa, mas profunda: o dinheiro físico, outrora pilar da soberania económica, está a ceder lugar a sistemas digitais mediados por gigantes tecnológicos como Apple, Google ou Revolut. Neste novo cenário, a União Europeia enfrenta um desafio decisivo: assegurar que o euro continua a ser relevante — não apenas como moeda, mas como instrumento de autonomia e identidade geopolítica.
É neste contexto que surge o euro digital, projeto liderado pelo Banco Central Europeu (BCE) com o apoio político da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu. Longe de ser uma simples inovação tecnológica, esta iniciativa é uma afirmação estratégica. Uma moeda digital emitida por um banco central representa o regresso do Estado à mesa dos pagamentos, hoje dominada por interesses privados e extraterritoriais.
Com a ambição de garantir a continuidade do dinheiro público na era digital e reforçar a posição global do euro, que atualmente representa apenas 20% das reservas cambiais mundiais, face aos 58% do dólar americano. O BCE acredita que uma versão digital da moeda única, assente numa arquitetura segura, jurídica e tecnicamente robusta, poderá contribuir para inverter este desequilíbrio.
Mas a transição não será isenta de fricção. A confiança — esse bem intangível — será o maior ativo ou o maior obstáculo do euro digital. Em países como a Alemanha e a Áustria, onde o dinheiro físico continua a ter forte aceitação, há uma resistência cultural e política a uma moeda digital controlada por um banco central. O receio da vigilância estatal, alimentado pelo exemplo chinês do yuan digital, é real. Promessas de anonimato “limitado” não convencem facilmente sociedades que valorizam a privacidade como bem fundamental.
A isto somam-se os riscos sistémicos. A possibilidade de o BCE permitir depósitos diretos em euros digitais levanta alarmes no setor bancário, que teme uma fuga de depósitos dos bancos comerciais — com impacto direto na sua capacidade de financiamento da economia.
E depois há a infraestrutura. A construção de um sistema pan-europeu, resiliente, sempre disponível e imune a ciberataques, é uma tarefa monumental. A recente falha de sete horas no sistema do BCE, em fevereiro deste ano, não ajuda a inspirar confiança na maturidade tecnológica da instituição.
Há ainda questões técnicas por resolver: como assegurar a usabilidade offline do euro digital, mantendo-o uma verdadeira alternativa ao numerário? Como garantir a sua aceitação legal universal? Como interoperar com outras moedas digitais públicas ou privadas, como o dólar digital ou o yuan?
Apesar destas interrogações, o euro digital não pretende substituir o dinheiro físico nem competir diretamente com os sistemas privados. A sua coexistência está assegurada — pelo menos na próxima década. Mas, para que não seja apenas mais uma opção, terá de apresentar uma proposta de valor clara e distinta. Os consumidores já dispõem de soluções rápidas, intuitivas e repletas de incentivos. Um euro digital que exija investimento adicional em terminais e adaptações operacionais, sem oferecer vantagens concretas, será condenado à irrelevância.
O BCE esta em fase de testes e consultas. A implementação formal dificilmente acontecerá antes de 2028. Há tempo para construir um projeto sólido — mas também há o risco de o tempo jogar contra a Europa, caso outros blocos avancem mais depressa com soluções mais eficazes.
O euro digital poderá ser a peça que falta para reforçar a soberania monetária da Europa num mundo em reconfiguração. Mas só cumprirá essa missão se for útil, confiável, seguro — e, acima de tudo, merecedor da confiança dos cidadãos europeus.